Considerando que grande parte dos cemitérios foi construída sem avaliação prévia do terreno, o descarte indevido do necrochroume faz com ele penetre no solo, lençóis freáticos, nascentes de rios e poços rasos. Isso pode causar diversas doenças na população que consome essa água.
Ignorados por causa de superstições e tabus religiosos, os cemitérios brasileiros são agora palco principal para entender a dimensão da pandemia da covid-19 no país. Além de indicativos evidentes como os mais de 320 mil óbitos e as milhares de famílias de luto, as necrópoles mostram problemas de superlotação, sobrecarga física e emocional de trabalhadores funerários — expostos à contaminação e a longas horas de trabalho — e, ainda, um outro problema: o alto número de sepultamentos pode agravar os danos para o meio ambiente e para a saúde das populações mais pobres que vivem perto desses locais.
No Ocidente, a preocupação com enterros começou no século 18, quando foram extintos os sepultamentos de pessoas em igrejas e outros locais sagrados dentro de áreas com alta densidade de pessoas e passou-se a enterrar os mortos longe da cidade, dando origem ao que conhecemos hoje por cemitérios. No entanto, estudos sobre os impactos ambientais das necrópoles aconteceram só no século 20.
Em um relatório publicado em 1998, a OMS (Organização Mundial de Saúde) avaliou que cemitérios também devem ser tratados como um potencial risco para o meio ambiente e a saúde pública. No estudo, diversos pesquisadores avaliaram cemitérios em países europeus, onde foi comprovada a presença de focos de bactérias e poluentes originários dos túmulos que impactavam a população vizinha às necrópoles.
No Brasil, os danos causados pelos cemitérios são objeto de estudo desde os anos 1970. Inúmeras análises já trouxeram evidências de que pessoas que moram e trabalham próximas desses locais podem ser vítimas de doenças decorrentes de bactérias e vírus presentes em água contaminada por necrochorume — líquido decorrente do processo de decomposição humana que penetra o solo.
Por falta de interesse do Poder Público e até por conta de dogmas religiosos que dificultam mudanças estruturais nesses locais, são poucas as atitudes tomadas para minimizar os danos que necrópoles podem produzir. Com o agravamento da pandemia e milhares de mortos por dia, os especialistas entrevistados pelo TAB alertam para um problema que já pode estar em curso nos cemitérios municipais.
Por que cemitérios são focos de contaminação?
Os riscos estão diretamente ligados à decomposição do corpo humano. Depois da morte, nosso organismo produz um líquido viscoso, castanho-acinzentado e mal cheiroso, chamado necrochorume. Ele contém várias substâncias que são expelidas do cadáver, como água, sais minerais, patógenos (organismos que podem causar doenças em um hospedeiro — bactérias, vírus ou protozoários) e até mesmo restos de medicação que a pessoa tomou em vida. Estima-se que cada cadáver pode produzir cerca de 30 a 40 litros de necrochorume em um período de seis meses a três anos, dependendo das condições em que foi enterrado.
Considerando que grande parte dos cemitérios foram construídos sem uma avaliação prévia do terreno, o descarte indevido do necrochroume faz com ele penetre o solo, contaminando lençóis freáticos, nascentes de rios e poços rasos. Isso pode causar diversas doenças na população que consome essa água: febre tifoide, problemas gastrointestinais (vômito, dores e diarreia) e tétano, entre outros. Sem contar que o próprio vírus da covid-19, de que ainda não se sabe exatamente o tempo de permanência em cadáveres, pode gerar problemas futuramente, na exumação dos corpos.
Por que a covid-19 piora essa situação? São mais mortes e, consequentemente, mais enterros — tudo isso com menos atenção dos órgãos públicos. Se a contaminação no solo já preocupava especialistas brasileiros antes da pandemia, agora, com o aumento expressivo de sepultamentos diários, o problema é ainda maior. “A concentração de enterros em cemitérios municipais é muito alta. O aumento de tumulações significa que o volume esperado de necrochorume ao longo de um ano é atingido quase que diariamente, com mais de mil pessoas morrendo por dia em São Paulo”, explica Fernando Augusto Saraiva, Mestre e Doutor em Geologia e Geofísica aplicadas e pesquisador no Instituto de Geociências da USP.
Em Manaus, onde valas coletivas foram abertas com um trator no Cemitério Municipal Nossa Senhora Aparecida, foi pedido atenção ao IPAAM (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) em relação aos sepultamentos. Na cidade, existem cerca de 10 mil poços que abastecem a população e o nível de profundidade dos lençóis freáticos é mais superficial.
Todo mundo corre risco de tomar água contaminada?
“Nós não somos muito desenvolvidos em termos de saneamento básico, por isso existe muita gente que recorre aos poços rasos”, explica Francisco Carlos da Silva, químico e professor das Secretarias Estadual e Municipal da Educação de São Paulo, mestre em Análise Geoambiental pela Universidade de Guarulhos e doutor em Ciências Ambientais pela Unesp-Sorocaba. Os maiores afetados pela contaminação são populações mais pobres, sem acesso à água tratada e saneamento básico, que dependem dos poços para conseguirem água. Em um levantamento feito em 2011 pelo geólogo Lezíro Marques Silva, 75% dos cemitérios brasileiros analisados apresentaram problemas sanitários e ambientais — como solo inadequado, vazamento de necrochorume no lençol freático ou proximidade de áreas residenciais.
Mas não existem regras para construir um cemitério?
Só em 2003 foi publicada pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) a Resolução nº 335, que obriga que cemitérios horizontais e verticais tenham licenciamento ambiental para serem construídos. A fiscalização foi incumbida aos órgãos fiscalizadores de cada estado ou município. Em São Paulo, por exemplo, a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) é responsável pelo monitoramento das águas subterrâneas e de possíveis contaminações das necrópoles.
No entanto, grande parte dos cemitérios foram construídos muito antes da resolução do Conama — e são raros os que realmente possuem licenciamento ambiental. Isso significa que grande parte foi construída sem qualquer estudo geotécnico prévio. Esse estudo analisa o tipo de solo, as condições climáticas da região e, principalmente, mapeia os níveis de profundidade dos lençóis freáticos para evitar contaminações.
“Não há a menor preocupação sobre cemitérios públicos, eles são simplesmente tratados como um depósito de corpos”, resume Silva. “No geral, foram construídos em lugares que não serviam para investimentos imobiliários e loteamento. Grande parte está em terrenos acidentados, e nunca houve um cuidado com a questão do meio ambiente. Muitos, como o Cemitério Municipal de Itaquera em São Paulo, estão próximos de nascentes”.
O que deve ser feito?
Com o número alto de mortes por dia, os especialistas ouvidos pelo TAB frisam que é urgente que os órgãos responsáveis façam monitoramento constante nos poços para avaliar a situação da água em regiões vizinhas a necrópoles. “É muito difícil tratar desse problema, porque o cemitério já está ali”, explica Saraiva .
“Você tem que estabelecer um raio, uma zona de segurança, e dentro dessa zona, os órgãos competentes precisam impedir o consumo dessa água na superfície.” Em maio de 2020, a comissão do Meio Ambiente do Conselho Nacional do Ministério Público publicou uma nota técnica pedindo atenção redobrada nos cemitérios devido à pandemia”.
”Até o momento, porém, o Ministério do Meio Ambiente não divulgou nenhuma medida sobre o que fazer em relação às necrópoles. “Essa pandemia não vai acabar tão cedo, e não adianta se preocupar só com os que estão vivos agora. Temos que nos preocupar com os que continuarão vivos amanhã. Estamos perto de passar por um problema de saúde pública, que vai acontecer em função de cemitérios”, afirma Silva.
Cremar é a melhor solução?
Os pesquisadores concordam que a cremação é uma opção ecologicamente mais viável. Ainda assim, grande parte dos mortos são sepultados na terra, por ser uma opção mais tradicional no Brasil e, normalmente, a mais barata oferecida pelos municípios — até pela escassez de crematórios. No entanto, frisa Silva, os crematórios devem estar aptos para funcionar. “Um cemitério representa um problema local naquela microbacia em que está situado. No caso de crematório, se você não tem um sistema de filtração correto, deixará de ter um problema local e passará a ter um problema mundial, porque está jogando tudo isso no ar”, conclui.
fonte TAB UOL